Leituras e Reflexões: Remexendo o passado.

Desenho: ilustração
No conto de hoje, o autor, ao recordar parte de sua infância, nos leva a viajar pelas lembranças, fazendo tambem revivermos coisas de épocas de nossas vidas. Um relato de hábitos, costumes e equipamentos diversos que nos deixam perdidos e saudosos do bom e simples momento. Uma história viva, real contada por seu protagonista.

 

Remexendo o passado

Os meus infantis tempos em Jequié, BA, marcam-se por alguns inesquecíveis episódios. Do bairro onde morávamos podia ver-se uma longa ponte sobre o Rio de Contas. Hoje, sob essa ponte correm águas previamente aproveitadas a montante, depois de terem circulado pelas turbinas da Usina Hidrelétrica Barragem de Pedra. À noite, eu me punha a mirar os veículos que nela transitavam com os seus faróis acesos. Não os via propriamente, mas os acompanhava imaginariamente ao sabor dos longínquos rastos luminosos deixados a rabiscar errantemente a escuridão, pensando eu que aqueles sinuosos traçados de luz eram palavrinhas escritas por carrinhos de brinquedo. Sim, divisando-os ao longe, a mim pareciam-me tão pequeninos e dinâmicos, que só podiam ser carrinhos de brinquedo. E eu queria tanto ter um carrinho daqueles…

Foto: IBGE arquivo


Na altura, a minha cidade natal era o ponto final do caminho de ferro iniciado em São Roque do Paraguaçu. A empresa operadora era a Estrada de Ferro de Nazaré, com sede na cidade de mesmo nome. Sucedeu a Tram Road de Nazareth, organizada por empreendedores ingleses, provavelmente à volta de 1875. Seguindo o seu traçado troncular, os comboios tracionados a locomotivas a vapor vivo rasgavam a porção centro-sul do Recôncavo baiano, invadiam o Vale do Jiquiriçá, sempre a passarem por várias cidades, vilas, distritos e lugarejos, cheiravam Itaquara, beijavam Jaquaquara, davam adeus ao Baixão para, enfim, irem dormitar na minha Jequié, de onde retornavam ciclicamente a São Roque do Paraguaçu, impontualmente às cinco da manhã do dia seguinte.

Foto: IBGE arquivo


Sem medo de desenvolver o cancro pulmonar, as locomotivas fumaçavam à vontade, exigindo, contudo, que se lhes dessem água de beber e se lhes pusessem lenha nas fornalhas, num ritual periodicamente repetido no percurso das viagens. O povo as apelidou marias-fumaça.

Quando criança, eu viajei algumas vezes nessas lentas, mas gostosas marias-fumaça. Depois, na década de 70, os nobres gestores públicos as substituíram por veículos rodoviários movidos a gasolina ou a gasóleo, fulminando as românticas viagens ferroviárias.

Em agosto de 2010, quando há muito a estrada de ferro já se desativara, tive a oportunidade de ir a Nazaré das Farinhas para rever a antiga estação ferroviária local, que agora se presta a finalidades outras. De lá, retornei a Salvador, mas antes estiquei a viagem até São Roque do Paraguaçu, pois estava determinado a visitar, após quase cinqüenta anos, a sua antiga estação ferroviária e também o porto onde atracavam os navios Paraguaçu, Canavieiras, João das Botas, Maragogipe etc. A completarem o ciclo das viagens, estas embarcações transportavam para Salvador as mercadorias e passageiros trazidos pelos comboios, ou, no sentido inverso, trazia-os da capital baiana para São Roque do Paraguaçu. Tenho na memória o momento quando, antes de o navio concluir a atracagem no porto, algumas pessoas mais afoitas nem esperavam os marinheiros ajustarem as pranchas sobre as quais os passageiros desembarcariam em segurança. Lançavam-se imprudentemente ao cais, numa desastrada operação para reservar lugares nas carruagens. Por vezes, um ou outro falhava o pulo e se acabava esmagado entre o costado da embarcação e o atracadouro feito a betão. Na altura, com perplexidade, eu não percebia por que tanta pressa.

Como disse, viajei nessas composições ferroviárias algumas vezes, quando ainda circulavam para Jequié. Numa dessas, eu, a minha mãe e uma das minhas tias maternas viajávamos em pé. Era noite. Num instante em que o comboio se contorcia a formar um esse, uma lufada impregnada de fumo e fuligem adentrou repentinamente a nossa carruagem. Em meio a esses resíduos da lenha em combustão usada na locomotiva a vapor, vieram também alguns fragmentos de carvão incandescente, reluzentes como pirilampos na escura noite. Um desses pequeninos vaga-lumes foi-se aninhar exatamente na região nucal de uma passageira postada num sítio bem em frente à minha tia. Para prevenir maiores estragos ao cabelo hospedeiro, e sem anuência alguma da proprietária da cabeça prestes a ser cremada, a minha tia usou instintivamente a mão direita para afugentar a pequena brasa. Apesar de o ter conseguido após algumas vãs tentativas, teve que explicar-se convenientemente à inconformada senhora beneficiária da contundente ação, a qual não se apeteceu dos safanões recebidos gratuitamente nem apreciou ter ficado com o cabelo em desalinho.

Foto: desenho Ilustração


Noutra oportunidade, um interessantíssimo episódio transcorrido numa das paragens intermediárias levou ao pânico uma preocupadíssima mãe. Ela se manteve a bordo enquanto o seu filho fora aliviar-se no mato. De repente, os implacáveis e agudos silvos anunciaram a iminente continuação da viagem. Com justo receio de que o filho ficasse no mato juntamente com o recém-evacuado material fecal novinho em folha, ainda quentinho, a desesperada mãe passou a chamá-lo freneticamente de volta à carruagem, numa interminável gritaria:

– Luís, Luís, c*ga aqui mesmo, Luís…

Certamente Luís era um filho obediente e dócil. Atentou aos apelos maternais e embarcou de volta. Logo logo a composição já se estremecia aos primeiros trancos, a soluçar em espasmos cada vez mais rápidos. Aos poucos ia avançando até alcançar a espantosa velocidade de cruzeiro, nunca superior aos 40 km/h – quem o sabe! – sempre a declamar alegre, rítmica e onomatopeicamente os versos do Trem de Ferro do grande pernambucano Manuel Bandeira

“Vou depressa

Vou correndo

Vou na toda

Que só levo

Pouca gente

Pouca gente

Pouca gente…”

Liiiiiiiiiiiiiiiiii!

Autor: Magno Reis Andrade


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