Leitura e reflexão: A Abafabanca e outras coisinhas de antanho.

Foto: Arquivo pessoal 

 A Abafabanca e outras coisinhas de antanho.


Neste texto, reverencio a tradição gráfica do Português europeu admitida nos limites do Acordo Ortográfico de 1990, e assim o faço em homenagem ao dileto amigo, Doutor Luís Alexandre Ribeiro Branco, a quem agradeço a gentileza de abrir-me as portas do seu blogue VERDADE NA PRÁTICA, dando-me a oportunidade de publicar este modesto texto. 

Em 1959, a minha família mudou-se de Jequié, BA, Brasil, para a capital baiana. A minha primeira escola foi a Escola Paroquial Nossa Senhora da Conceição da Praia, que funcionava nalgumas dependências internas da Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia, sobre a qual quero comentar um bocadinho, antes de atacar o tema proposto.

Thomé de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil, aportou na então Baía no dia 29 de março de 1549, data em que hoje se comemora a fundação da Cidade do Salvador. Imediatamente após a sua chegada, essa autoridade portuguesa mandou construir a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Na altura, as suas instalações eram bem mais simples. No atual templo, cuja construção iniciou-se em 1736, as paredes são majestosamente erguidas com pedras de cantaria numeradas em Portugal. A sua inauguração se daria 29 anos depois, em 1765, portanto. Ora, muito bem, foi no convívio com os coleguinhas na Escola Paroquial Nossa Senhora da Conceição da Praia, que eu comecei a sentir os primeiros choques culturais.

Recém-chegado de uma cidade do sudoeste baiano, não me demorei a ter o primeiríssimo impacto. Em Jequié, chamávamos genericamente sedã a qualquer automóvel; quem o conduzisse seria o «chauffeur». Bem, a palavra francesa «chauffeur» até que era usada em Salvador, porém o termo aportuguesado sedã não. Quando eu o utilizava para nomear um ligeiro, os miúdos da minha idade riam-se de mim. Atónito, eu não percebia o porquê de ser caçoado a esse motivo.

Em Salvador, havia os bondes elétricos, conhecidos simplesmente como elétricos em Portugal. Para caracterizar algo de grandes dimensões, os soteropolitanos cunharam a expressão comparativa «grande como um bonde». Hélio Machado, cuja gestão no cargo de prefeito da Cidade do Salvador findou-se em 1958, importou da Itália uns tróleis [ónibus elétricos] muito confortáveis. Em virtude da irregular topografia da cidade, os tróleis circulavam apenas na Cidade Baixa, onde quase não há caminhos inclinados. Eu mesmo viajei muito neles.

Outra expressão a ser destacada é «pegar o boi». Em quase completo desuso na atualidade, era usada por quem quisesse referir a um intento de final proveitoso. Dir-se-ia então que o ganhador de um prémio lotárico teria «pegado o boi». Não tenho a mais pequena ideia de como essa expressão surgiu. Convém notar que àquela época usava-se unicamente o particípio passado regular do verbo pegar [pegado], exatamente como ainda hoje se pratica em Portugal.

No início da década de 60, os ónibus tinham o popular nome de «marinetes». Consultados sobre a etimologia de «marinete», os meus dicionários olharam-me espantados. Mantiveram-se calados. Entretanto, os motores de busca na internet informam-nos que, na primeira metade do século passado, um italiano chamado Marinetti veio ao Brasil proferir umas palestras sobre a arte do futuro e, «como o ónibus apareceu como uma novidade, uma coisa do futuro», o povo nordestino o associou ao futurismo, passando a chamá-lo «marinete». Outra fonte internética nos diz que «A visita do poeta italiano Marinetti ao Brasil, exatamente em 1927, provocou um grande reboliço no Sul e em especial no Nordeste, onde os recém-lançados ónibus passaram a ser conhecidos como marinetes.»

Na capital baiana, não se usavam as expressões «meninos de rua» nem «meninos na rua», cujas conceituações doutrinárias são distintas, muito embora alguns possam afirmar que se trate da mesma coisa. Sinto-me em dificuldade para admiti-lo porque, ao estudar a disciplina Direito Constitucional da Criança e do Adolescente, no curso de Direito da Universidade Católica do Salvador, aprendi que os primeiros vivem vulnerável e definitivamente desassistidos nas vias públicas, onde improvisam as suas «moradas» sem teto. Os seus responsáveis são omissos, ausentes ou mortos. Em princípio, os «meninos na rua» são trabalhadores mirins com vínculos familiares tendentes à fragilização progressiva, livres para sair e retornar à noite à casa dos respetivos responsáveis. Com o tempo, todavia, podem perder o receio de estar na rua, com alta probabilidade de se converterem em “meninos de rua”.

Esses meninos em situação de rua são os atuais «pivetes», assim nomeados pejorativamente por serem crianças ou adolescentes em estado de risco social a conviver na rua. Nos anos 50 e 60, em Salvador, os «pivetes» eram chamados «capitães de areia» [ou da areia]. A propósito, o renomado escritor baiano Jorge Amado escreveu um romance intitulado «Capitães da Areia».

Dando um salto para a atualidade, enquanto em março de 2019 eu estava confinado num quarto a convalescer de uma cirurgia, fazia incursões mentais no tempo e no espaço. Numa dessas, não sei por que cargas d’água, o termo abafabanca veio-me repentinamente à mente. Tive, então, a ideia de provocar no Twitter os meus amigos espalhados pelo Brasil, concitando-os a me informarem se conheciam a abafabanca, se não a conheciam ou, ainda, se a conheciam com outro rótulo. 

Do amigo Marcel Ribeiro [@Marcelhenriquem] chegou-nos a primeira importante colaboração: a abafabanca tem origem nordestina e «é o nome de um sorvete feito de frutas em cuba de geladeira, vendido em casa.»

Na Região Nordeste estão os Estados do Maranhão [MA], Piauí [PI], Ceará [CE], Rio Grande do Norte [RN], Pernambuco [PE], Paraíba [PB], Sergipe [SE], Alagoas [AL] e, evidentemente, a Baía [BA], o berço do Brasil. Vê-se, portanto, que estamos diante de uma vastíssima região. Por coincidência, o amigo Marcos Mairton [@MarcosMairton], atualmente a viver em Brasília, porém oriundo da nordestina Fortaleza, assegura-nos:

— Magno, caro amigo, não faço ideia do que venha a ser ABAFABANCA. De modo que, se vi alguma em Fortaleza, chamei-a por outro nome.

De outro lado, ante os esclarecimentos fornecidos pelo amigo Marcel Ribeiro, a nossa colega microcontista Cynthia Santana Nogueira [@Upenalista], residente em Goiânia, GO, informou-nos: 

— Em Goiás não existe tal iguaria.  

Entrementes, o escritor Nelson Valente [@Escritor4] interveio:

— Abafabanca é gelo com sabor de frutas. 

Não só. Com o seu saber enciclopédico, deu-nos a receita e um segredinho do passado:

— É muito simples de preparar porque é só colocar o suco em forminhas de gelo. Era o sorvete dos pobres de antigamente, fiz muito quando eu era criança. 

Surpreso com os esclarecimentos acima, o amigo Marcos Mairton pediu a palavra para fazer um aditamento à sua declaração inicial. Informou-nos que a abafabanca tinha livre curso na casa da sua vovó, mas não com essa designação. Era preparada em cubinhos e conhecida por «doce gelado». Complementou que, às vezes, essa felicidade das crianças era servida em saquinhos de plástico, caso em que era apelidado «dimdim».

Surpreendi-me com o onomatopaico «dimdim» — que nada tem a ver com dinheiro — e entreguei-lhe outra novidade:

— Em Jequié, a minha quentíssima cidade natal, chamam «apolo» ao que em Fortaleza é conhecido por «dimdim». Nem me perguntes o motivo…

Lá do Passo Fundo, RS, o notável mestre José Carlos Bortoloti [@profeborto], que a tudo escutava, disse-nos que os gaúchos não sabem o que é a abafabanca. Do mesmo modo, a capacitadíssima professora Zi Carloni [@Profzi] relatou-nos que os mineiros também a ignoram.

Conciliando a minha experiência pessoal com a recolha desses preciosos contributos — porque, à semelhança do nosso Nelson Valente, eu próprio me deleitei com as abafabancas — posso testemunhar que a abafabanca soteropolitana é uma mistura feita com água, açúcar e sumo ou polpa de fruta, ou simplesmente com qualquer soluto adocicado, natural ou artificial, que se deita em formas [ou cuvetes] internamente dispostas com divisórias quadradas ou retangulares, ou em pequenos compartimentos redondos, destinados originalmente à formação de gelo. Em seguida, as tais formas são levadas aos congeladores dos frigoríficos, onde, após algum tempo, a mistura nelas distribuída se solidifica. Nunca tive notícia de que as abafabancas fossem vendidas em estabelecimentos comerciais. Conforme bem referiu o nosso Marcel Ribeiro, elas eram produzidas no âmbito doméstico e consumidas nas próprias residências, onde também eram vendidas ao público.

Já que estamos a falar de regionalismos, gozemos com as curiosas designações em ambos os lados do Atlântico. A pessoa que se delicia com um gelado em Portugal fará o mesmo com um sorvete no Brasil. Em Cascais, Portugal, há uma curiosa geladaria a anunciar a venda do melhor gelado do mundo. Já entrei numa fila relativamente longa para experimentar um dos tais. Quanto a esse gelado ser o melhor da face da Terra, há sérias controvérsias. Entanto, atire a primeira abafabanca quem, nesta vida, ainda não cometeu hipérboles ou não praticou uma mentirinha inofensiva. Enfim, quem se apetecer de um sumo fresco em Portugal certamente gostará de um suco gelado no Brasil e quem comprar um sorvete de pau em Portugal adquirirá um picolé no Brasil. Pode ser a mesma coisa, contudo, por convicções pessoais, prefiro o picolé ao sorvete de pau.

Autor: Magno Reis Andrade 




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Geraldo Brandão

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