Papa Francisco: a vida, as ideias, os amigos e os perigos dentro do Vaticano

Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL   |   Por: Robert Draper
 
Ao levar ao mundo sua mensagem de mudança, Francisco privilegia os pobres em vez da doutrina, trazendo alegria e preocupação aos católicos romanos


Foto: Dave Yoder

Quando as 7 mil pessoas da plateia se impressionam ao vê-lo pela primeira vez no palco, ele ainda não é o papa. Mas, como nos frêmitos de uma crisálida, algo extraordinário já está presente naquele homem. Na casa de eventos Luna Park, em Buenos Aires, Argentina, católicos romanos e cristãos evangélicos congregam-se para um evento ecumênico. Ao microfone, um pastor pede ao arcebispo da cidade que venha dizer algumas palavras. O público fica surpreso, pois quem se adianta com um andar decidido estava sentado lá no fundo durante horas, como se fosse um qualquer. Embora seja cardeal, ele não traz a tradicional cruz peitoral; veste apenas uma camisa preta de clérigo e um paletó, como o simples padre que foi em décadas passadas. Quem vê o idoso magro e circunspecto nesse momento, nove anos atrás, dificilmente pode imaginar que aquele argentino despretensioso e soturno será um dia conhecido em todas as partes do mundo como uma figura radiante e carismática.

De início em tom baixo mas sem nervosismo, ele fala em espanhol, sua língua nativa. Não trouxe nada escrito. O arcebispo não faz menção ao tempo em que ele, com o mesmo menosprezo de muitos padres católicos latino-americanos, comparava o movimento evangélico a uma escola de samba – um espetáculo frívolo como os ensaios nos galpões do Carnaval. Em vez disso, o argentino de maior poder na Igreja Católica, que se intitula a única igreja cristã verdadeira, diz que, para Deus, essas distinções não importam. “Que lindo é ver que irmãos estão unidos, que irmãos oram juntos”, louva ele. “Que lindo é ver que ninguém negocia sua história no caminho da fé, que somos diversos, mas queremos ser, e já começamos a ser uma diversidade reconciliada.”

De mãos espalmadas para o alto, o rosto de repente animado e a voz vibrante de emoção, ele roga a Deus: “Pai, estamos divididos. Une-nos!”

Os que conhecem o arcebispo ficam atônitos, pois sabem que sua habitual expressão implacável já lhe trouxera apelidos como “Mona Lisa” e “Carucha” (por suas mandíbulas de buldogue). Mas o gesto marcante que também será lembrado desse dia acontece assim que ele acaba de falar. O cardeal se ajoelha devagar no palco e pede que os presentes orem por ele. Após uma pausa perplexa, todos o atendem, conduzidos por um ministro evangélico. A imagem do líder religioso prostrado de joelhos em meio a homens de menor prestígio, numa postura de súplica ao mesmo tempo submissa e imponente, estará nas primeiras páginas em toda a Argentina.

Uma das publicações que estampam a foto é a revista Cabildo, considerada a voz dos católicos ultraconservadores do país. Na manchete da reportagem, um termo chocante: apóstata. O cardeal é retratado como traidor de sua fé.

Esse é Jorge Mario Bergoglio, um argentino. O futuro papa Francisco.


O papa Francisco abraça um jovem deficiente defronte à Basílica de São Pedro. O líder dos 1,2 bilhão de católicos conquistou a admiração do mundo por sua simpatia, franqueza e humildade - Foto: Dave Yoder

“Preciso começar a fazer mudanças agora mesmo”, anunciou Francisco a meia dúzia de amigos argentinos certa manhã, apenas dois meses depois que 115 cardeais no conclave do Vaticano o propeliram do relativo anonimato ao papado. Para muitos observadores, uns exultantes, outros incomodados, o novo papa parecia já ter mudado tudo da noite para o dia. Ele era o primeiro papa latino-americano, o primeiro papa jesuíta, o primeiro papa não nascido na Europa em mais de mil anos e o primeiro papa a adotar o nome Francisco, em honra a São Francisco de Assis, padroeiro dos pobres. Logo após sua eleição, em 13 de março de 2013, o novo chefe da Igreja Católica materializou-se em um terraço da Basílica de São Pedro todo vestido de branco, sem o tradicional manto escarlate nos ombros e sem a estola bordada em ouro ao pescoço. Saudou as massas ululantes lá embaixo com eletrizante simplicidade: “Fratelli e sorelle, buona sera” – “Irmãos e irmãs, boa noite”. E encerrou com um pedido que muitos de seus conterrâneos já conheciam como sua marca registrada: “Rezem por mim”. Ao partir, ele passou direto pela limusine que o aguardava e entrou no ônibus reservado aos cardeais que tinham acabado de nomeá-lo seu superior.

Na manhã seguinte, o pontífice pagou sua conta no hotel onde estivera hospedado. Depois, abriu mão dos tradicionais aposentos papais no Palácio Apostólico e preferiu morar em um apartamento de dois dormitórios na Casa Santa Marta, a residência de hóspedes dentro do Vaticano. Em seu primeiro encontro com a imprensa internacional, ele enunciou sua ambição primordial: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres!” E, em vez de celebrar a missa noturna da Quinta-Feira Santa (comemorando a Última Ceia) em uma basílica e lavar os pés de padres, como é tradicional, ele pregou em uma prisão para jovens, onde lavou os pés de 12 detentos, entre eles mulheres e muçulmanos, ato inédito para um papa. Tudo isso ocorreu em seu primeiro mês como bispo de Roma.

Os amigos do novo papa compreenderam o que ele queria dizer com “mudanças”. Embora até o menor de seus gestos fosse dotado de uma importância considerável, o homem que eles conheciam não se contentava em exibir símbolos. Ele era um porteño prático, calejado da vida de cidade grande em sua Buenos Aires natal. Queria que a Igreja Católica fizesse diferença na vida das pessoas – que fosse, nas palavras dele, um hospital num campo de batalha, recebendo todos os feridos, não importando de que lado lutassem. No empenho por esse objetivo, segundo um amigo argentino, o rabino Abraham Skorka, ele podia ser “uma pessoa muito teimosa”.

Jorge Mario Bergoglio antes de virar o papa Francisco

Se, para o resto do mundo, o papa Francisco parecia ter desabado do céu como uma chuva de meteoros, em sua terra ele era uma figura religiosa bem conhecida – às vezes polêmica. Filho de um contador cuja família emigrou da região do Piemonte, no noroeste da Itália, Bergoglio logo se distinguiu ao entrar para o seminário, em 1956, aos 20 anos, depois de ter trabalhado como técnico de laboratório e, por breve período, como segurança de boate. Pouco depois, ele escolheu a intelectualmente exigente Sociedade de Jesus como seu caminho para o sacerdócio. Como aluno do Colégio Máximo de San José em 1963, demonstrou “elevado discernimento espiritual e habilidades políticas”, segundo um de seus professores na época, o padre Juan Carlos Scannone, e rapidamente se tornou um conselheiro espiritual tanto para estudantes como para professores. Ele lecionou para rapazes rebeldes, lavou pés de prisioneiros, estudou no exterior. Tornou-se reitor do Colégio Máximo e presença assídua em conturbadas favelas de Buenos Aires. E ascendeu na hierarquia jesuíta ao mesmo tempo que navegava pelas turvas águas da política de uma era em que a Igreja Católica se enredou em tensas relações com Juan Perón e, mais tarde, com a ditadura militar. Ele perdeu as boas graças de seus superiores jesuítas, depois foi resgatado do exílio, por um cardeal seu admirador, e consagrado bispo, em 1992, arcebispo, em 1998, e cardeal, em 2001.

De temperamento tímido, Bergoglio – que se autointitula callejero, isto é, “rueiro” – preferia a companhia dos pobres à dos ricos. Eram poucos os seus prazeres: literatura, futebol, tango e nhoque. Apesar de tanta simplicidade, esse porteño era um animal urbano, um observador perspicaz e, no seu jeito discreto, um líder nato. Também sabia aproveitar o momento, fosse em 2004, ao deblaterar contra a corrupção em um discurso na presença do presidente da Argentina, fosse em 2006, ao cair de joelhos no Luna Park. Como diz o padre Carlos Accaputo, um fiel assessor desde que começou a trabalhar para Bergoglio, em 1992: “Acho que Deus o preparou, durante todo o seu pastorado, para este momento”.

Além disso, seu papado não foi golpe do acaso. O escritor romano Massimo Franco explica: “A eleição de Francisco surgiu de um trauma”. Ele fala da súbita (e, por quase seis séculos, sem precedentes) renúncia do papa Bento XVI, ao mesmo tempo que crescia o sentimento entre os cardeais mais progressistas de que a mentalidade encanecida e eurocêntrica da Santa Sé estava apodrecendo a Igreja Católica por dentro.

Desafios do papado

Sentado na sala de estar de seu apartamento naquela manhã, o papa admitiu para seus velhos companheiros que tinha pela frente desafios formidáveis. Caos financeiro no Instituto para as Obras de Religião (mais conhecido como Banco do Vaticano). A burocracia travando a administração central, chamada de Cúria Romana. Contínuas revelações sobre padres pedófilos isolados da Justiça por autoridades da Igreja. Nesses e em outros problemas, Francisco pretendia agir com rapidez, sabendo que, nas palavras de um amigo presente naquela manhã, o pastor pentecostal e acadêmico Norberto Saracco, “ele iria fazer uma porção de inimigos. Ingênuo ele não é, certo?”

Saracco lembra-se de que expressou preocupação com a audácia do papa. “Jorge, sabemos que você não usa colete à prova de balas”, disse ele. “Há muitos loucos por aí.”

Francisco então replicou, calmamente: “O Senhor me pôs aqui. Ele vai ter que tomar conta de mim”. Embora não tivesse pedido para ser papa, ele conta que, no momento em que anunciaram seu nome no conclave, foi tomado por uma imensa sensação de paz. E, apesar das animosidades que ele provavelmente provocaria, assegurou aos amigos: “Ainda sinto a mesma paz”. Já o Vaticano sente outra coisa.

Federico Wals, que por vários anos foi assessor de imprensa de Bergoglio, viajou de Buenos Aires para Roma no ano passado para ver o papa. Mas fez, primeiro, uma visita ao padre Federico Lombardi, veterano relações-públicas do Vaticano cujo trabalho é essencialmente análogo às antigas funções de Wals, só que em escala bem maior. “E então, padre, como se sente com respeito ao meu exchefe?”, perguntou o argentino. Lombardi forçou um sorriso e respondeu: “Confuso”.

Lombardi fora porta-voz do papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, um homem de precisão germânica. Ao sair de um encontro com um líder mundial, Lombardi me conta com palpável saudade, o ex-papa disparava um resumo incisivo. “Era incrível a clareza de Bento. Ele dizia: ‘Falamos sobre tais coisas, concordei em tais aspectos, discordei nesses outros, o objetivo do nosso próximo encontro será tal e tal’ – e, em dois minutos, eu ficava inteiramente a par do conteúdo.”

Agora, com um risinho meio desarvorado, Lombardi fala sobre Francisco: “O novo papa é um homem sensato; teve umas experiências de vida interessantes. Diplomacia, para ele, não é bem uma questão de estratégia. É mais uma coisa de ‘conheci tal pessoa, agora temos uma relação pessoal, então que a partir de agora façamos o bem para o povo e para a Igreja’”.

Em um evento público na Praça de São Pedro, Francisco vai de papamóvel, sem a proteção de vidros blindados. O pontífice caminhava livremente quando era cardeal em Buenos Aires, mas, por segurança, não pode fazer isso em Roma - Foto: Dave Yoder
O porta-voz do papa discorre sobre os novos valores do Vaticano sentado em uma pequena sala de conferência no prédio da Rádio Vaticano, vizinha do Rio Tibre. Suas vestes sacerdotais amarrotadas condizem com sua expressão de cansado desnorteio. Ontem mesmo, ele conta, o papa recebeu na Casa Santa Marta um grupo de 40 líderes judeus – e o escritório de imprensa do Vaticano só ficou sabendo após o fato. “Ninguém sabe tudo o que ele está fazendo”, diz Lombardi. “Nem mesmo seu secretário pessoal. Tenho de ligar para um monte de gente. Um conhece uma parte da agenda dele; outro sabe de outra parte.”

Por fim, o chefe de comunicação do Vaticano observa, resignado: “É a vida”.

Mudaças no Vaticano

As coisas mudaram. A vida era totalmente diferente no tempo de Bento, um acadêmico cerebral que continuou a escrever livros teológicos durante seus oito anos de papado, assim como no tempo de João Paulo II, que se valeu de sua formação em teatro e de seus talentos linguísticos em quase 27 anos de pontificado. Ambos foram confiáveis guardiões da ortodoxia papal. O espetáculo desse novo papa, com seu relógio de plástico e seus sapatões ortopédicos tomando o café da manhã no refeitório do Vaticano, requer tempo para deixar de pasmar as pessoas.

O mesmo vale para seu senso de humor, distintamente informal. Depois de receber na Casa Santa Marta a visita de um velho amigo e conterrâneo argentino, o arcebispo Claudio Maria Celli, Francisco fez questão de acompanhar seu convidado até o elevador. “Para que isso?”, perguntou Celli. “É para ter certeza de que fui embora mesmo?” De bate-pronto, o papa retorquiu: “E de que não está levando nada”.

Para as tentativas de adivinhar as idas e vindas do papa de 78 anos, o mais próximo de um intermediário com quem as autoridades do Vaticano podem contar é o cardeal Pietro Parolin, o secretário de Estado de Francisco. Ele é um respeitadíssimo e veterano diplomata e, o mais importante, tem a confiança de seu chefe, segundo Federico Wals, “porque não é demasiado ambicioso, e o papa sabe disso. Essa é uma qualidade fundamental para o papa”. Ao mesmo tempo, Francisco reduziu drasticamente os poderes do secretário de Estado, em especial no que diz respeito às finanças do Vaticano. “O problema, nesse aspecto, é que a estrutura da cúria não é mais clara”, diz Lombardi. “O processo é contínuo, e como será no final ninguém sabe. O secretário de Estado não é mais tão centralizador, e o papa trata de muitos assuntos que são geridos somente por ele, sem intermediação.”

Bravamente enfatizando o lado bom, o portavoz do Vaticano acrescenta: “Em certo sentido, isso é positivo, pois, no passado, se criticava o fato de alguém ter poder demais sobre o papa. Agora não podem mais dizer tal coisa”.

Como muitas instituições, o Vaticano é avesso a mudanças e desconfia de quem quer implementá- las. Desde o século 14, o epicentro católico tem sido uma cidade-estado murada de 44,5 hectares no meio de Roma. A Cidade do Vaticano há tempos é ímã para turistas, graças à Capela Sistina e à Basílica de São Pedro, e destino de peregrinação para 1,2 bilhão de católicos do planeta. Em outras palavras: o mundo vai até lá, e não vice-versa. Mas é também o que sua designação implica: uma entidade territorial autossuficiente, com seus próprios administradores municipais, força policial, tribunais, corpo de bombeiros, farmácia, correio, mercearia, jornal e time de críquete. Seus jornalistas, os vaticanisti, monitoram os vaivéns da instituição com o mesmo ceticismo penetrante dos repórteres políticos no resto do mundo. Sua força de trabalho reacionária não paga impostos sobre vendas na Cidade do Vaticano. Sua burocracia diplomática, como toda burocracia que se preze, recompensa bispos favoritos com cargos invejáveis enquanto relega os menos diletos a setores do mundo desoladores. Por séculos, a Cidade do Vaticano sobreviveu a conquistas, pestes, fomes, fascismo e escândalos. Os muros resistiram.

Um papa disponível

Agora vem Francisco, um homem que despreza muros e certa vez disse a um amigo quando passavam em frente à Casa Rosada, a residência presidencial da Argentina: “Como podem saber o que as pessoas comuns querem se constroem uma cerca em volta deles?” Bergoglio se empenha em ser o que Massimo Franco, que escreveu um livro sobre Francisco e o Vaticano, chama de “um papa disponível – uma expressão contraditória”. A própria ideia parece que faz empalidecer a face opaca do Vaticano. “Acho que ainda não vimos as verdadeiras mudanças”, diz Ramiro de la Serna, padre franciscano residente em Buenos Aires que conhece o papa há mais de 30 anos. “Também acho que ainda não vimos a verdadeira resistência.”

Os próceres do Vaticano estão, de fato, avaliando o homem. Tem sido um exercício tentador para eles interpretar as reações francas do papa como prova de que ele é puro instinto. “Totalmente espontâneos”, diz o porta-voz Lombardi sobre os muito comentados gestos de Francisco durante sua viagem ao Oriente Médio, entre eles abraçar um imame, Omar Abboud, e um rabino, seu amigo Skorka, depois de orar com eles diante do Muro das Lamentações. No entanto, Skorka revela: “Discuti isso com ele antes de partirmos para a Terra Santa. Eu disse: ‘É um sonho meu abraçar você e Omar ao pé do muro’”.

O fato de Francisco ter concordado de antemão em atender ao pedido do rabino não torna o gesto menos sincero, obviamente. Sugere a percepção de que cada ato e cada sílaba seus seriam analisados em busca de significado simbólico. Essa prudência condiz com o Jorge Bergoglio conhecido por seus amigos argentinos, que riem da ideia de que ele seja ingênuo. Eles o descrevem como um “enxadrista”, que tem cada dia “muito organizado”, no qual “cada passo foi totalmente pensado”. O próprio Bergoglio disse aos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin, vários anos atrás, que raramente seguia seus impulsos, pois, em suas palavras, “a primeira resposta que me vem à cabeça costuma ser errada”.

Mesmo nas mudanças aparentemente drásticas que Francisco trouxe ao estilo de vida, com bom senso ele fez concessões às realidades do Vaticano. Sugeriu que sua Guarda Suíça não precisaria segui-lo por toda parte, mas, desde então, se resignou com sua presença constante. (Costuma pedir aos guardas que tirem fotos dele com visitantes – outra concessão, pois há muito tempo Bergoglio se esquiva de câmeras.) Embora evite o papamóvel de vidros blindados usado depois que João Paulo II sofreu um atentado em 1981, ele reconhece que não pode mais andar de metrô nem se misturar ao povo nos guetos, como era seu famoso costume em Buenos Aires. Isso o fez lamentar, quatro meses depois de assumir o papado: “Sabem que muitas vezes anseio por caminhar pelas ruas de Roma, pois, em Buenos Aires, eu gostava de sair para andar na cidade. Gostava muito de fazer isso. Nesse sentido, me sinto um pouco engaiolado”.


Aclamado como o “primeiro papa latino”, Francisco é filho de italianos que emigraram para a Argentina. Como Jorge Mario Bergoglio, ele tinha a reputação de buscar estar perto do povo em Buenos Aires, onde nasceu, foi criado, entrou para a Ordem dos Jesuítas e se tornou cardeal. Ele ia a favelas e andava de metrô, como nesta foto de 2008 - Foto: Dave Yoder

Amigos dizem que, como chefe do Vaticano e argentino, ele se sente na obrigação de receber a presidente de seu país, Cristina Kirchner, mesmo sendo evidente para ele que Cristina usa essas visitas em proveito político próprio. “Quando Bergoglio recebeu a presidente com simpatia, foi por pura bondade”, comenta o pastor evangélico Juan Pablo Bongarrá, de Buenos Aires. “Talvez a visita não fosse necessária. Mas é assim que Deus nos ama, por pura bondade.”

Para Federico Wals, seu ex-assessor de imprensa, o início cuidadoso de Bergoglio no papado não foi nenhuma surpresa. Prenunciou-se já no modo como ele deixou seu cargo anterior. Percebendo que havia a chance de o conclave elegê-lo – afinal, ele ficara em segundo lugar quando Ratzinger fora eleito após a morte de João Paulo II, em 2005 –, o arcebispo viajou para Roma em março de 2013, conta Wals, “com todas as cartas terminadas, o dinheiro em ordem, tudo em perfeita forma. Na véspera da partida, ele ligou à noite só para discutir detalhes do cargo comigo e também para me dar conselhos sobre o meu futuro, como alguém ciente de que talvez estivesse partindo para sempre”.

Estava mesmo, e, apesar da serenidade que tem mostrado, Francisco encara suas novas responsabilidades com seriedade – temperada com a sua característica autodepreciação. Como ele comentou no ano passado a um ex-aluno, o escritor argentino Jorge Milia, “procurei muito na biblioteca de Bento, mas não consegui achar nenhum manual do usuário para o cargo. Por isso, eu me viro o melhor que posso”.

Francisco é um reformador, como a mídia gosta de retratá-lo. Um radical. Um revolucionário. Mas também não é nada disso. Seu impacto até o presente é tão impossível de passar despercebido quanto de ser medido. Francisco acendeu uma fagulha espiritual não apenas nos católicos mas em outros cristãos, em pessoas de outras fés e até em não crentes. Nas palavras do rabino Skorka, “ele está mudando a religiosidade no mundo inteiro”. O líder da Igreja Católica é visto por muitos como uma boa notícia para uma instituição que durante anos antes de sua chegada só tivera más notícias. “Dois anos atrás”, diz o padre Thomas J. Reese, jesuíta e analista sênior do noticioso National Catholic Reporter, “se você perguntasse a qualquer um na rua ‘O que a Igreja Católica defende e combate?’, ouviria ‘É contra o casamento gay, contra o controle da natalidade’ e coisas do tipo. Hoje, se você perguntar, as pessoas dirão ‘Ah, o papa é o cara que ama os pobres e não mora em palácio’. É uma proeza e tanto para uma instituição tão antiga. Costumo gracejar que a escola de negócios de Harvard poderia contratá-lo para ensinar como se reformula uma marca. E, cá entre nós, os políticos fariam qualquer coisa para ter uma taxa de aprovação como a dele.”

Obviamente, como podemos perceber ao falar com autoridades do Vaticano, não fica bem para uma instituição tão augusta o espetáculo de um culto à personalidade, como se o papa fosse um astro de rock. Para alguns, a popularidade de Francisco também é ameaçadora. Reforça o mandato dado a ele pelos cardeais, que desejavam um líder capaz de deixar de lado o pomposo distanciamento da Igreja e de expandir seu rebanho espiritual. Um deles, o cardeal Peter Turkson, de Gana, recorda: “Pouco antes do conclave, estávamos todos os cardeais reunidos, e trocamos ideias. Havia certo clima de ‘vamos ver se conseguimos uma mudança’. Era marcante. Ninguém disse ‘Basta de italianos ou de europeus’, mas o desejo de mudança estava lá”.

“O cardeal Bergoglio era ainda um desconhecido de todos os que ali estavam”, continua Turkson. “Mas então ele fez um pronunciamento – uma espécie de manifesto. Recomendou que pensássemos na Igreja que chega à periferia – não só a geográfica, mas a periferia da existência humana. Para ele, o Evangelho convida todos nós a ter esse tipo de sensibilidade. Essa foi a contribuição dele. E trouxe nova mentalidade ao trabalho pastoral, uma experiência diferente nos cuidados com o povo de Deus.”

Para aqueles que desejavam uma mudança, como Turkson, Francisco não decepcionou. Em dois anos, ele já nomeou 39 cardeais, dos quais 24 não são da Europa. Antes de fazer um causticante pronunciamento em dezembro passado enumerando as “doenças” que afetam a cúria (entre elas “vanglória”, “bisbilhotice” e “lucros mundanos”), o papa encarregou nove cardeais – apenas dois deles não pertencentes à cúria – de reformar a instituição. Classificando o abuso sexual na Igreja como um “culto sacrílego”, ele criou a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, chefiada por Seán Patrick O’Malley, arcebispo de Boston. Para trazer transparência às finanças do Vaticano, o papa escolheu um ex-jogador de rugby durão, o cardeal George Pell, de Sydney, Austrália, e nomeou-o prefeito da Secretaria de Economia – designação que deixa Pell no mesmo nível do secretário de Estado. Em meio a todas essas nomeações, o papa ainda fez um gesto notável de respeito pela velha guarda: manteve o cardeal Gerhard Müller, um linhadura nomeado por Bento, no cargo de chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, incumbida de salvaguardar as crenças da Igreja.


O papa chega em um carro comum e entra no Palácio Apostólico com o prefeito da Casa Pontifícia, Georg Gänswein. Esta costuma ser a moradia dos papas, mas Francisco prefere viver num apartamento modesto - Foto: Dave Yoder

Atos assim são muito significativos, mas é difícil dizer aonde levarão. As primeiras pistas fascinaram tanto os reformistas quanto os católicos mais tradicionais. Ao mesmo tempo que ele aceitou a renúncia de um bispo americano que foi o primeiro a ser condenado por não informar sobre suposto abuso sexual, Francisco nomeou para o bispado um padre chileno que teria encoberto os abusos sexuais de outro clérigo, provocando protestos na cerimônia de posse do bispo. Além disso, a reunião preliminar do Sínodo da Família convocada por Francisco em outubro passado não produziu nenhuma mudança doutrinária drástica, o que abrandou católicos conservadores que temiam exatamente isso. Mas o sínodo de outubro próximo poderá gerar um resultado diferente. Sobre a questão de revogar a proibição à comunhão para os católicos divorciados que não tiveram o casamento anulado, Juan Carlos Scannone, amigo e ex-professor do papa, comenta: “Ele me disse ‘Quero ouvir todos’. Então, ele vai esperar pelo segundo sínodo e vai ouvir todos. Mas, com certeza, é receptivo a mudanças”. Nas mesmas linhas, Norberto Saracco, o pastor pentecostal, debateu com o papa sobre a possibilidade de remover o sempre polêmico requisito do celibato para os padres. “Se ele conseguir sobreviver às pressões da Igreja agora e aos resultados do Sínodo sobre a Família em outubro, creio que depois disso estará pronto para falar sobre celibato”, diz Saracco. Quando pergunto se o papa lhe disse isso ou se ele está afirmando por intuição, Saracco responde com um sorriso astuto: “É mais que intuição”.

Por outro lado, os ouvintes do papa Francisco podem interpretar suas palavras e seus gestos como bem entenderem. Para um homem de falas e hábitos tão simples, isso parece irônico. Mas também não é novidade.

O papa vai mudar a Igreja? Ou a Igreja vai mudar o papa?

Em 2010, Yayo Grassi, um fornecedor de refeições residente em Washington, DC, mandou um zangado e-mail a seu exprofessor, o arcebispo de Buenos Aires. Grassi, que é gay, lera que seu querido mentor havia condenado a legislação destinada a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “O senhor foi meu guia, sempre ampliou os meus horizontes, moldou os aspectos mais progressistas da minha visão de mundo”, escreveu Grassi. “E ouvir isso de sua parte é uma tremenda decepção.” O arcebispo respondeu por e-mail – embora, sem dúvida, tenha dado um rascunho redigido com sua letra miúda a seu secretário digitar, já que o papa Francisco, naquela época como hoje, nunca navegou na internet, nunca usou computador nem possui telefone celular. (Todos os dias, a assessoria de imprensa do Vaticano prepara os tuítes nas nove contas @Pontifex, que ele tem no Twitter, com 20 milhões de seguidores, e os publica com a aprovação do papa.) O papa começou dizendo que as palavras de Grassi o tinham afetado profundamente. A posição da Igreja Católica quanto ao casamento era o que era, rigorosa e doutrinária. Contudo, doía-lhe saber que havia desgostado seu aluno. O ex-maestrillo de Grassi assegurou a ele que a mídia deturpara toda a sua posição. Acima de tudo, disse o futuro papa em sua resposta, em sua obra pastoral não havia lugar para a homofobia.

Essa correspondência nos dá um vislumbre do que podemos e não podemos esperar de seu papado. No fim, Bergoglio não repudiou sua posição contrária ao casamento gay, que, como ele escreveu em uma daquelas cartas, vê como ameaça “à identidade e à sobrevivência da família: pai, mãe e filhos”. Nenhum das dezenas de amigos que entrevistei acredita que Francisco modificaria a postura da Igreja nessa questão.

O que renovou a reverência de Grassi por seu ex-professor é justamente aquilo que hoje fascina multidões na Praça de São Pedro e, sem dúvida, terá o mesmo efeito em setembro, quando ele for aos Estados Unidos. É a brancura cegante de sua veste papal, reinventada para simbolizar uma simplicidade acessível. É a afinidade do porteño com as ruas combinada à crença do jesuíta no convívio intenso com a comunidade. Esse encontro envolve procurar e ouvir e requer a coragem da humildade – uma tarefa mais árdua que a publicação impessoal de éditos. É o que impeliu Bergoglio a se ajoelhar e pedir orações a milhares de cristãos evangélicos. É o que o deixou de olhos marejados ao visitar uma favela em Buenos Aires onde um homem declarou saber que o arcebispo era um deles porque o tinha visto viajando nos fundos do ônibus. É o que o levou, quando papa, a não querer que um padre albanês preso e torturado por seu governo lhe beijasse a mão, e, em vez disso, ele é que tentou beijar a mão do padre e depois chorou sem disfarce abraçado a ele. E é o que estarreceu milhões de pessoas dois anos atrás, quando Francisco, em seu emblemático momento retórico, proferiu estas simples e espantosas palavras em branda resposta a uma pergunta sobre padres gays: “Quem sou eu para julgar?”

Quem sabe seja essa a verdadeira missão do novo papa: desencadear uma revolução dentro e fora dos muros do Vaticano, sem contudo derrubar nenhuma porção de preceitos históricos arraigados. “Ele não vai mudar a doutrina”, garante Ramiro de la Serna, seu amigo argentino. “O que ele vai fazer é devolver a Igreja à sua verdadeira doutrina: a doutrina que ela esqueceu, a que prioriza o homem. A Igreja valorizou o pecado por tempo demais. Devolvendo ao centro o sofrimento do homem e sua relação com Deus, essas atitudes severas com a homossexualidade, o divórcio e outras coisas começarão a mudar.”

Por outro lado, o homem que disse aos amigos que precisava “começar a fazer mudanças agora mesmo” não tem o tempo a seu favor. Seus velhos amigos argentinos não se surpreenderam quando ele comentou, em meados deste ano, que seu papado talvez dure apenas “quatro ou cinco anos”, pois sabem que Jorge Mario Bergoglio gostaria de terminar seus dias em sua terra natal. Essas palavras decerto trouxeram alívio aos linhas-duras do Vaticano, que tudo farão para desacelerar os esforços de Francisco pela reforma da Igreja e torcerão para que seu sucessor venha a ser um adversário menos arrojado.

Ainda assim, essa revolução, bem-sucedida ou não, é sem igual, mesmo que seja só pela alegria inquebrantável com que vem sendo implementada. Quando o novo arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Mario Poli, comentou com Francisco durante uma visita à Cidade do Vaticano que era extraordinário ver seu amigo outrora tão sisudo com um sorriso onipresente, o papa refletiu bastante nessas palavras, como sempre faz.

E então Francisco, com um sorriso, apenas disse: “Ser papa é muito divertido”.